O livro Quinta do Crasto. Uma história que vem de longe (1615-2018) pode ser encomendado através do e-mail crasto@quintadocrasto.pt.

PREFÁCIO

O CRASTO SERENO

A aproximação por barco, rio acima, vindo da Régua, não permite ter diante de nós o esplendor do Crasto. Pelo contrário, o percurso inverso, para quem vem do Pinhão, rio abaixo, em direcção do Oeste e do Porto, oferece-nos a oportunidade de contemplar, de frente, para nosso eterno espanto, esta quinta maravilhosa, talvez a sua parte mais conhecida e reputada: a vinha Maria Teresa, logo seguida pela vinha da Ponte, em suaves socalcos ondulados, encabeçados pela longa instalação da casa, do armazém, dos lagares e da adega. Os edifícios seguem a crista da colina, discretamente, mas com a certeza de que está ali a cabeça da empresa, a responsável pelo ordenamento das vinhas e das suas parcelas e pela centralidade da quinta. O Crasto é muito mais do que isto, mas esta primeira impressão, imperdível, dura décadas na nossa alma e assenta a primeira ideia com que ficamos da quinta: a da tranquilidade. Visto do rio, ou até da outra margem, margem Sul ou margem esquerda, o Crasto é doce e sereno.

Conforme o ponto de vista, quinta e Douro ganham aspectos e formas diferentes. O rio e o vale, vistos do Crasto, tomam a dimensão de cena dramática, tal a sua força. Da Sobreira, bem lá no alto, adquirem majestade. Da casa da quinta, quase a pique sobre a linha de caminho-de-ferro, perto da antiga estação do Ferrão, hoje abandonada, o vale parece eternamente em descanso, um misterioso espelho de água. Do meio do rio, a possibilidade de olhar para a ondulação das vinhas quase nos promete o sublime! São momentos inesquecíveis de beleza, onde se combina a obra dos homens com a oferenda da natureza.

O Crasto é obra! Mais de 400 anos de história, uma parte dos quais documentados. E agora, mais do que nunca, uma certeza, a dos 100 anos após uma espécie de refundação! Esta quinta do Crasto é um repositório da história do Douro e do Vinho do Porto, com todos os seus episódios, desde as produções anteriores à Companhia, ou mesmo anteriores à vinificação com benefício de aguardente, até à grande projecção dos novos vinhos Douro DOC. Sem esquecer todos os acontecimentos e vicissitudes que trouxeram o Crasto através dos tempos, passando pela Companhia Pombalina, pelos sucessivos movimentos de liberalização e de regulação do mercado, pelas grandes pragas do século XIX (Oídio, Míldio e Filoxera), pela criação do “Método para a Distribuição do benefício do Vinho do Porto” (Álvaro Moreira da Fonseca), pela fundação da Casa do Douro e do Instituto do Vinho do Porto, pela revolução de 1974 e pela adesão à União Europeia (na altura Comunidade Económica Europeia)! Toda esta história passou pelo Crasto. Mas o Crasto não ficou passivo, fez toda esta história! Isto é, os seus proprietários ou lavradores trataram do seu desenvolvimento, da sua projecção para o comércio externo e da inovação dos seus métodos de trabalho e de produção. Em poucas palavras, adaptaram-se aos novos tempos, mas também souberam escolher e fazer esses tempos.

É desta história secular que trata este livro. Feito por uma parceria de luxo: a quinta do Crasto e Gaspar Martins Pereira! A primeira, com a família Almeida e Roquette, responsável por alguns dos melhores vinhos portugueses. O segundo, a maior autoridade na história da Região Demarcada do Douro e do Vinho do Porto! Este trabalho traz até nós a vida desta quinta, obra dos seus proprietários, lavradores, técnicos e trabalhadores durante séculos. Obra que pode exibir provas, documentos e vestígios até à fidalguia dos séculos XVII, mas sobretudo até aos proprietários, comerciantes e magistrados dos séculos XVIII e XIX, entre os quais a linhagem dos Pacheco Pereira, notáveis no Porto e muito envolvidos nos vinhos do Douro. Neste livro, vemos também o modo como uma segunda família, a de Constantino de Almeida, tomou em mãos, já no século XX, a quinta e o seu negócio, tendo sido responsável por novo ciclo de desenvolvimento e consolidação. Mais tarde, com a família Moreira de Almeida e Roquette, o Crasto tem nova fase de crescimento, de inovação e de projecção no exterior. Muito em particular, é neste último período que a grande e nova reputação do Crasto, a dos vinhos DOC, se faz e afirma. Para o que contribui uma nova aventura, inédita para esta quinta como entidade empresarial, que reside no alargamento das suas vinhas às longínquas terras ditas do Douro superior.

Neste livro, Gaspar Martins Pereira, com a minúcia habitual, conduz-nos, através dos tempos e dos registos civis e de propriedade, à evolução da quinta, às suas transformações de estrutura e dimensão e às mudanças de vocação. São particularmente saborosas as referências aos modos como se foi fazendo vinho. Ou, como se diz com frequência no Douro, como se foi “fabricando” vinho, quando era legal e razoável acrescentar baga de sabugueiro e açúcar, para dar cor e doçura, ou misturar com vários vinhos e produtos, ou trazer aguardente antes, durante ou depois da fermentação, no lagar, no tonel ou na pipa. Todas estas práticas já foram legais e já foram proscritas. Já serviram para “fabricar” vinho, mas também para “martelar”, como se dirá hoje. O que nos faz mais uma vez perceber que as obras das vinhas e dos vinhos têm muito de constante, mas também de mutável. O que é uma certeza do Douro e do vinho do Porto: a aliança entre a tradição permanente e a mudança ágil, quando feita com rigor e experiência, é o segredo do êxito. E tem sido a receita do Crasto.

Mas há algo, no Crasto, que Gaspar Martins Pereira detecta e revela e que é essencial não só para a vida desta quinta, como também constitui factor primordial de desenvolvimento para toda a região. Em poucas palavras: a quinta do Douro é quase sempre um assunto de família! A durabilidade, a riqueza, a beleza, o rendimento e a qualidade de uma quinta do Douro dependem muito de uma família, da maneira como a propriedade passa de mão em mão e de geração em geração. Da estabilidade de uma família depende em grande parte a prosperidade de uma quinta do Douro. Não é uma regra absoluta, mas é uma muito alta probabilidade. Os melhores anos da Quinta do Crasto foram os anos da família Pacheco Pereira, da família Constantino de Almeida, depois Moreira de Almeida e agora da família Roquette.

Uma quinta tem assento de lavoura, casa, armazém, lagar, adega e cardenhos. Às vezes capela. Tem socalcos e caminhos. Pode ter terra de pão, horta e olival. Tem lojas para animais e alfaias. Agora, modernamente, tem instalações para receber visitas e turistas. Uma quinta é uma instituição complexa, uma organização delicada e uma entidade sensível. Já se fazem mesmo biografias de quintas, como tem feito Gaspar Martins Pereira. Uma quinta tem sempre uma vida difícil, marcada pela sua dependência da natureza e do clima, o que lhe dá um carácter imprevisível e errático que nem sempre é o melhor conselheiro para um actividade económica e comercial. Numa quinta, os tempos são longos, tempos das estações do ano, tempos de operações agrícolas, tempos de plantação e crescimento, tempos de envelhecimento. Uma quinta exige paciência, sabedoria, experiência, espera, atenção e minúcia. Numa quinta, os factores económicos são tão importantes quanto os humanos; os aspectos sociais tão decisivos quanto os naturais. Numa quinta, a liderança é tão importante quanto a equipa.

Uma quinta necessita de um lavrador. Um agricultor. Um proprietário. Um viticultor ou vitivinicultor! Certamente. Como qualquer outra organização ou empresa. Mas, para durar e viver, uma quinta necessita de uma família. Uma vinha precisa de tempo. A vida de uma videira e de uma vinha mede-se em décadas. Plantar, tratar, crescer, desenvolver, render, apurar e consolidar são coisas de muitos anos. Uma família permite prever em combinação com várias gerações e ajuda a formar equipas de trabalho e de gestão, com um factor primordial: o factor humano. O valor das pessoas pesa. A força dos sentimentos inspira. A ligação à terra e à casa marca.

Pode haver evidentemente boa quinta em más mãos. Ou má quinta em boas mãos. Mas qualquer dessas situações é efémera e destinada a acabar depressa. Até porque as famílias, que são tantas vezes o segredo do êxito de uma quinta, são também, não poucas vezes, a razão do seu fim. Ambição, lutas e partilhas podem fazer mal às quintas. Crise de família é quase seguro crise da quinta.

Na história da quinta do Crasto, tão bem contada por Gaspar Martins Pereira, é visível o percurso da quinta, de família em família, de crise em crise, de êxito em êxito. Cada vez que a quinta do Crasto venceu, percebe-se que era período de “boa quinta em boas mãos”! Deste Crasto, que tanto soube mudar nestas últimas décadas, espera-se que mantenha o seu carácter e continue a sua caminhada. Para que seja sempre possível ver aparecerem, na volta do vale do rio, as ondulações da vinha Maria Teresa…

António Barreto

Última Atualização: 21 de Abril de 2021